Veículo: Jus Econômico
Autor: Romeu Tuma Júnior
Data: 22-09-2014

Tramita da Câmara dos Deputados um projeto de lei (PL nº 6369/13), de autoria parlamentar, já aprovado na Comissão de Defesa dos Consumidores, que absurdamente propõe igualar ao estelionatário o comerciante que colocar à venda produto que não possua em seu estoque.

Vejamos o que consta no inteiro teor do referido PL:

“O Congresso Nacional decreta:

Art. 1º – O art. 66 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 66; parágrafo segundo: Quem oferecer, expor à venda ou comercializar produto que não possui em estoque, na condição de varejista, sem comprovadamente informar o fabricante do produto, no prazo de 10 dias da celebração do negócio, ou entregar produto de origem diversa daquela oferecida ao consumidor final:

Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa.

Parágrafo terceiro: Incide nas mesmas penas do parágrafo segundo o comerciante que, após informar o fabricante da realização do negócio, não adquirir os produtos.

Parágrafo quarto: Se o crime é culposo:

Pena – detenção de um a seis meses ou multa”.

Como se vê, pela referida proposta legislativa, a pena para tal conduta poderá chegar a até 05 (cinco) anos de reclusão, mais multa, sendo a pena reduzida para 06 (seis) meses se o “crime” for praticado na forma culposa.

De qualquer modo, ainda que tal não tenha sido a intenção, o resultado prático, para fins penais, será o de igualar o comerciante regularmente estabelecido, ou seja, com endereço certo e atividade legal, a um estelionatário!

Com efeito, sem adentrar no mérito da motivação da proposta de nova alteração na Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), até porque já disse muitas vezes que nossas leis nascem sem certas cautelas, como por exemplo a devida e necessária consulta entre os que devem aplicá-las, penso que se tal conduta, a exemplo de tantas outras já previstas na legislação consumerista, for de fato criminalizada, o resultado efetivo seria tão somente a utilização de todo o aparto repressivo estatal contra pessoas que, a rigor, não poderiam estar em pé de igualdade com um fraudador, eis que, ao contrário do estelionatário, se tratam de comerciantes regularmente estabelecidos e inserido num mercado competitivo, que já pune aqueles que não oferecem confiança.

Nesse contexto, como se explica a ânsia cada vez maior dos nossos legisladores de envolver a Polícia, que já capenga na sua função principal de proteger a população e a sociedade contribuinte contra verdadeiros criminosos violentos, em situações que poderiam muito bem ser dirimidas no âmbito civil e administrativo, como são por exemplo as condutas que o ilustre parlamentar agora pretende criminalizar?

Em verdade, no Brasil nunca se legislou tanto em matéria criminal quanto nos últimos 25 (vinte e cinco) anos, ou seja, após a vigência da Constituição Federal de 1988, e como podemos constatar facilmente, por falta de estudos, planejamento, foco e outras falhas do processo legislativo participativo, os resultados ao invés de diminuir a criminalidade e aumentar a segurança, são diametralmente opostos.

Peca-se por agir sob clamor ou para se fazer média com certos seguimentos, e nesse sentido, onde carecemos de mudanças e avanços firmes e pontuais eles não ocorrem, e onde as coisas funcionam razoavelmente bem, tende-se a bagunçar, sempre movido por interesses não republicanos.

Verifica-se uma tendência, na maioria das vezes injustificada, à criminalização primária, transmutando a retribuição penal como solução primeira para todo e qualquer problema de fundo social, tais como, questões tributarias, relações de consumo, trânsito, condições de gênero, etárias e familiares, tal como se sucedeu recentemente com a famigerada “Lei da Palmada”.

Todavia, nesse falso recrudescimento do espírito legislativo em matéria penal, olvidam-se conquistas históricas obtidas pela sociedade brasileira no sentido de se limitar o poder punitivo, seguindo a orientação clássica da doutrina penal, bem ilustrada na lição de Cesar Beccaria, que já em 1763 afirmava:

“Toda pena que não derive da necessidade absoluta é tirania. (…) todo ato de autoridade de homem para homem que não derive da necessidade absoluta é tirânico. (…) o direito soberano de punir dos delitos se funda sobre a necessidade de defender o depósito do bem comum das usurpações particulares; e tanto mais justa são as penas quanto mais sagrada e inviolável é a segurança e maior liberdade que o soberano garante aos súditos. (…) todas as penas que ultrapassem a necessidade de conservar esse vínculo são injustas por sua própria natureza” (BECCARIA, 2005, p. 42/43).

Significativo, portanto, que um Estado moderno e pretensamente democrático, em pleno século 21 se olvide das lições que eram ditadas, no século 18, num ambiente muito mais hostil às liberdades individuais.

Tal sanha legislativa de se criminalizar, de modo indiscriminado, toda sorte de condutas e relações sociais, sempre sob um pueril argumento de “proteger o cidadão”, em verdade serve como verdadeira “cortina de fumaça” das reais mazelas sociais que penalizam esse mesmo cidadão, carente dos serviços essenciais que, em tese, o Estado deveria lhe suprir mas que, negligente no cumprimento do papel que por dever lhe cabe, opta pela degeneração do espírito das leis, punindo com rigor excessivo todo e qualquer erro de conduta que poderiam ser, perfeitamente, dirimidos na esfera cível ou administrativa. Especialmente, quando esse erro é cometido por aqueles que pagam caros impostos, criam empregos onde eles são mais necessários e não costumam errar, ao menos por má fé.

É a velha prática de criar dificuldades para se vender facilidades, infelizmente resgatada e muito em moda no país atualmente.

O Estado por exemplo não presta seus serviços obrigatórios com qualidade. Vejam a situação da segurança pública, educação e saúde as quais todos tem direito e que não recebem minimamente um serviço de razoável qualidade, muito ao contrário.

Hoje até água encanada falta por deficiência da máquina pública que teima em culpar um santo pela falta de chuva quando sabemos que a falta de investimentos é o maior responsável pela penosa situação de muitos consumidores desse que é o produto que mais abunda no planeta.

Qual a pena para isso? O que faz o parlamento e seus integrantes que tem dentre suas obrigações constitucionais e atribuições principais, como representantes eleitos pela sociedade, fiscalizar o Poder Executivo?

Defender o consumidor é muito importante, especialmente os que pagam salários para os que devem prestar serviços melhorando a qualidade de vida de todos nós.

Agora, criminalizar conduta duvidosa sem uma devida justificativa, apenas para marginalizar o pequeno empresário ou o pequeno comerciante que muitas vezes não pode manter estoque em grande quantidade, ou mesmo, vive da revenda com base no prazo da entrega, é no mínimo apostar contra o próprio consumidor, no sentido que se inviabilizará o comércio de bairro, onde a relação de confiança muitas vezes é mais séria e eficaz que a contratual.

Inviabilizar o comércio de bairro, é inviabilizar o acesso dos menos favorecidos a produtos e serviços. É inviabilizar a própria Cidade, onde já não é possível se deslocar de um bairro para outro, face à falta de transporte de qualidade, segurança pública, e até o excesso de faixas que por consequência já tira o espaço das próprias ruas.

Segundo alguns “entendidos”, soltar traficantes travestidos de drogados é possível para aliviar os presídios, agora querer travestir pequenos empresários e comerciantes de estelionatários para encher cadeias ou alimentar a chaga da corrupção é simplesmente industrializar mais uma máquina para proporcionar mecanismos de achaques que dia a dia tem aumentado consideravelmente, sem que haja qualquer enfrentamento pelas autoridades, muito ao contrário.

O que se espera, é que a regra não vire exceção nem vice-versa, e quando o cachorro estiver com pulgas, alguém resolva tratá-lo e não matá-lo, pois o exemplo vem de cima.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *